terça-feira, fevereiro 19, 2008

Cinema

Crítica com vôo solo


Daniel Day Lewis personifica com maestria o capitalismo selvagem

É difícil não enxergar um “quê” de George W. Bush em Daniel Plainview, personagem que, literalmente, ganha vida na soberba interpretação de Daniel Day Lewis em Sangue Negro. O filme é a adaptação do épico livro Oil!, de Upton Sinclair, sob batuta do jovem, porém já renomado diretor Paul Thomas Anderson. Plainview é uma verdadeira alegoria para magnatas do petróleo e grandes corporações capitalistas, gente que, como ele, é capaz de passar por cima de qualquer princípio em troco de poder e lucro fácil, características compartilhadas pelo atual presidente dos Estados Unidos.

Plainview é o típico empreendedor norte-americano, figura que procura riqueza explorando a ingenuidade de potenciais “sócios” e a pujança de novos nichos de mercado. E no início do século XX, o petróleo era a bola da vez. Desde os primeiros e silenciosos minutos do longa, descobrimos que as atitudes de Plainview são movidas quase que unicamente pela ambição pelo poder. A dor física não deve ser empecilho para o sucesso e a construção de uma família só deve acontecer se esta possibilitar novos dividendos para o negócio. E se esta representar uma ameaça à saúde dos empreendimentos, ela deve rapidamente ser abandonada.

A ambição de Plainview pelo poder possui um fim nela mesma. Ele ludibria camponeses ingênuos, convencendo-os a conceder suas terras para a exploração de petróleo em troca das benesses proporcionadas pelo progresso capitalista, mas não faz isso pensando em enriquecer para poder desfilar pela alta-sociedade, ganhar passe-livre junto aos poderosos ou conquistar uma infinidade de mulheres e ostentar uma vida luxoriosa. Não, Plainview quer mais e mais petróleo apenas para poder dizer que o possui. Na cena em que vemos o brilho de seus olhos ao ter o corpo totalmente coberto pelo precioso líquido, que jorra de um de seus poços, entendemos que o petróleo é mais que um fetiche para Plainview, é o alimento de seu ego.

É claro que um projeto arriscado como este, clara crítica ao comportamento das mais poderosas corporações do mundo atual, poderia soar pretensioso e vazio caso não tivesse sido conduzido por mãos hábeis como as de Paul Thomas Anderson. Rompendo com o estilo herdado de Robert Altman, onde a narrativa fluía por meio de verdadeiros mosaicos de personagens, Anderson entrega seu Sangue Negro quase que inteiramente ao talento de Day Lewis. O filme é todo dele para brilhar, sendo que apenas três coadjuvantes têm real importância para a trama. São eles o filho adotivo H.W., que Plainview utiliza para ganhar um ar de empresário de família; o suposto irmão Henry, último elo do prospector com o antigo seio familiar; e o pastor protestante Eli Sunday, único rival à altura do protagonista, homem que capitaliza sua influência em torno da fé, mercadoria capaz de rivalizar com o dinheiro, embora ambas quase sempre andem de mãos dadas.


Plainview é capaz de usar o filho adotivo para melhorar a própria imagem

Sunday revela-se um entrave para os projetos de Plainview. A capacidade oratória do pastor (vivido pelo jovem Paul Dano, de Pequena Miss Sunshine) rivaliza com a do prospector, e alguns fiéis passam a cobrar uma maior proximidade do empresário com os “assuntos divinos”. Algo que Plainview reluta em fazer, pois reconhece ele próprio na figura do pastor, um falso profeta que usa a boa-fé dos outros para conseguir prosperar. Em suma, Eli não quer ficar mais próximo de Deus, apenas ter mais poder e influência que o prospector.

Mas ao contrário do que o senso comum possa imaginar, Plainview não chega a configurar-se na personificação do mal-encarnado. Anderson é suficientemente sábio para não retirar todos os traços de humanidade do personagem, o que possibilita até mesmo uma certa identificação do público com aquele. Apesar de toda a ambição e de ter conseguido prosperar no negócio, podemos notar um vazio na alma do magnata do petróleo. Existe, sim, um afeto verdadeiro dele para com o menino H.W., apesar da forma pouco sensata que Daniel conduz a criação do filho. Posteriormente, a aproximação do suposto irmão revela que o protagonista sente falta de um ambiente familiar. Mas, novamente, basta seu “império” ser ameaçado para que o personagem volte a embarcar na solidão de seus projetos, realizando tudo conforme suas crenças, não lhe importando críticas externas ou o prejuízo das relações com terceiros. Alguém mais percebe um “quê” de Bush nisso tudo?

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