quinta-feira, fevereiro 07, 2008

Cinema

Na trave


Uma dupla cativante luta para sobreviver; o filme só precisava deles

Após contar um personagem maravilhoso em sua estréia como diretor, em Constantine, Francis Lawrence foi mais uma vez abençoado com um excelente protagonista para contar uma história, e desta vez com o adicional de poder contar com o maior astro da atualidade para o interpretar. Em Eu sou a lenda, Will Smith precisa apenas da primeira seqüência para fazer seu Robert Neville cair no gosto do público, sendo o pilar que sustenta um filme que tinha tudo para ser uma obra-prima, mas acaba frustrando a expectativa por conta de decisões pouco acertadas no desenrolar da trama.

Neville é, aparentemente, o último sobrevivente humano de um vírus que deu cabo de mais de noventa por cento da população, tendo transformado outra boa parte em aberrações, formando um misto entre vampiros e zumbis. Estes, por sua vez, devoraram praticamente todos aqueles imunes à praga. Isto deixa Neville – ou melhor, Will Smith – com uma deserta Nova York inteiramente sua para brincar. O cenário de gigantescas avenidas, completamente desertas, é perfeito para perseguir cervos fugidos do zoológico a bordo de um carrão esportivo. Uma cena que parece egressa de um game dos consoles da nova geração. Ver a maior metrópole do mundo entregue a um só homem dá a exata dimensão do drama vivido pelo protagonista, mesmo em uma cena carregada da mais pura adrenalina.

E é aí que Eu sou a lenda revela sua faceta mais interessante. Trata-se de um filme sobre a solidão e sobre como ela pode afetar nossa percepção e atitudes. A excepcionalidade da situação proporciona que Smith construa um personagem muito mais atormentado do que aquele vivido por Tom Hanks em O náufrago, outro exemplo de filme de “um homem só”. Se Hanks teve de recorrer a uma bola de vôlei para exteriorizar seus sentimentos, Smith tem a sua disposição a adorável cadela Sam, além de uma vasta gama de manequins e filmes. São eles que sustentam a sanidade de Neville, que precisa dela porque se auto-impôs a missão de encontrar uma cura, projeto em que estava envolvido antes mesmo da pandemia.


Tudo caminhava bem até a aparição dos monstros digitais

O diretor também sabe construir um clima de suspense sobre os monstros enfrentados por Neville. Notívagos, os bichos ficam sempre às escuras, criando seqüências de deixar o cabelo em pé apenas com vultos e sons estranhos. E quão grande é a decepção do espectador quando eles finalmente dão as caras. Com um visual propositalmente digitalizado, capaz de atrair a atenção da molecada sem elevar a classificação indicativa do filme, as criaturas contrastam demais com o restante da produção, que até agora obtinha sucesso com um drama intimista sobre a dificuldade de viver só. Para piorar, a montagem do filme acaba enfraquecendo o recurso do flashback, onde Neuville é visto com a família na tentativa de deixar a cidade antes que esta fosse isolada do restante do mundo. O que serviria perfeitamente como introdução acontece muito perto do clímax, quando o desenrolar dos fatos já não interessam ao espectador. E isso apenas para justificar uma reviravolta forçadíssima no final, ao maior estilo M. Night Shyamalan.

Alice Braga é outra que sofre nas mãos dos roteiristas. A brasileira vive Anna, personagem que aparece no final da história apenas para dizer que Neville não está só, e que Deus tem outros planos pra ele – sim, ela diz isso! Pior é constatar que a equipe não encontrou forma de estabelecer uma conexão entre os dois, apelando para um diálogo musical, onde Anna, pasmem, não conhece o trabalho de Bob Marley! Uma confissão em película de que a equipe não sabia como conduzir a história a partir daquele ponto.

Pena, já que Eu sou a lenda tinha tudo para figurar entre os melhores filmes do ano: ótimas seqüências de ação, fotografia e direção de artes impecáveis, um protagonista pra lá de dedicado e um diretor talentoso, mas que infelizmente ainda não possui voz para peitar executivos ávidos por alguns milhões de dólares a mais.

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