quarta-feira, março 28, 2007

Cinema

Cheiro de sucesso


Iria colocar uma foto da Bunda, mas poderia ser mal interpretado...

Após dois bem sucedidos filmes, Heitor Dhalia pode ser colocado no rol de maiores promessas do cinema brasileiro. Em seu primeiro longa, Nina, ele mostrou-se capaz de adaptar um texto clássico como Crime e castigo de Dostoievski, com coragem para inserir toques pessoais ao projeto. Já em O cheiro do ralo, fica evidente o amadurecimento do diretor, algo irônico, visto que neste ele trilhou o caminho oposto.

Em seu novo filme, Dhalia opta por uma adaptação praticamente literal da obra de Lourenço Mutarelli. Quem conhece o livro só sentirá falta da subtrama envolvendo a mocinha do relógio, e uma ou outra sacada que precisou ficar de fora. No mais, está tudo na tela, exatamente como no livro, o que resulta em um dos filmes mais criativos e interessantes da nova safra do cinema nacional. Com um projeto de tamanha qualidade, até seria possível promover o diretor do status de promessa para autor consolidado, mas dois fatores me obrigam a manter a cautela.

O primeiro é o próprio texto original de Mutarelli, de caráter extremamente cinematográfico e, sobretudo, tão genial, que façanha mesmo teria sido se Dhalia tivesse feito um filme ruim. O outro responde pelo nome de Selton Mello. O ator vive Lourenço, protagonista da história, de maneira irretocável, conferindo inexplicável carisma àquela que deveria ser a mais odiosa das criaturas, um sujeito que não gosta de ninguém e sobrevive tirando proveito dos outros.

Lourenço ganha a vida comprando as mais diversas coisas para depois revendê-las por um preço maior. Para se dar bem, ele precisa ser frio o bastante para oferecer o menor valor possível. Dificilmente ele perde o controle, exceto pelo insuportável cheiro do ralo do banheiro de seu escritório, que o deixa nervoso e confuso, a ponto de constatar que tal odor era uma extensão dele próprio ou, talvez, do inferno. O terrível descaso com sua noiva e com as “vítimas” de seu emprego atestam o fato de que apenas um sujeito tão detestável poderia exalar tal fragrância.

Ironicamente, Lourenço acaba encontrando redenção no amor. Mas não em uma paixão qualquer, visto que seu objeto de adoração é uma bunda, e tão somente ela, não restando carinho algum pela “proprietária” do derrière. A felicidade de Lourenço agora depende da posse de seu objeto de desejo, que ele pretende conquistar da mesma forma com que ele adquire os pertences com quais ganha a vida.

Com um roteiro como este, fica impossível filmar algo pouco original, mas Dhalia consegue ir além ao conferir um excelente visual para o longa, por meio de uma estético urbana e estéril, onde nenhuma cena acontece em locais abertos, mostrando um universo sempre fechado por paredes ou muros. E para completar o ambiente angustiante, o diretor confere uma edição ágil tal qual a do livro, nos aproximando da rotina desumana e, infelizmente, tão comum nas grandes cidades atuais. Dhalia merece ainda mais aplausos por ter rodado o filme de forma tecnicamente impecável, com parcos 330 mil reais.

Além da direção, do roteiro e de Selton Mello, O cheiro do ralo é marcado por outras gratas performances. Eva Braun não decepciona no papel da garçonete e de seu alter-ego, a Bunda. Como a primeira é uma divertida moça simples da cidade grande, trabalhadora e alienada , que acaba afeiçoando-se pelo admirador da segunda, esta exibida e despudorada. Destaque também para a viciada vivida por Silvia Lourenço, que consegue ser mais tresloucada que o personagem principal. E Lourenço Mutarelli como o segurança, grande surpresa do filme, destacando-se em ótima atuação. Quem o vê em cena mal pode acreditar que se trata do autor, figura geralmente tímida em entrevistas e aparições na TV. Tomara que Dhalia consolide sua carreira como cineasta em sua próxima empreitada e que Lourenço Mutarelli não fique longe das telas por muito tempo, seja como roteirista ou mesmo como ator.

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