sábado, fevereiro 24, 2007

Cinema

Agente duplo


Clint Eastwood dirige japoneses em "Cartas de Iwo Jima"...

Pra mim é difícil falar de Clint Eastwood sem ser parcial. Não chego a considerá-lo um de meus diretores favoritos, mas tenho o velho caubói como um modelo de conduta com relação aos seus projetos. Aos 76 anos de idade, Clint continua firme, emendando um bom lançamento atrás do outro, passando longe dos dois maiores males que podem acometer um artista: a preguiça e o ego.

Com mais de trinta anos de carreira e dois Oscars de melhor diretor, Eastwood poderia facilmente ter sido tomado pela soberba que domina tantos diretores. M. Night Shyamalan, Tim Burton e até Martin Scorsese são exemplos de diretores talentosos que já fizeram filmes com ares de alto-indulgência. Clint, por sua vez, prefere contiuar falando sobre assuntos mais próximos de sua personalidade, utilizando sua habitual narrativa detalhista. O que impressiona é ver que apesar de manter uma fórmula, o diretor não costuma se repetir.

Quanto à preguiça, os últimos trabalhos do diretor são a prova definitiva que ela passa longe de sua rotina. Clint resolveu estrear no gênero da guerra, famoso pela complexidade técnica, mas ele não se deixou intimidar, e resolveu filmar não apenas um filme, mas dois, contando a história da batalha de Iwo Jima sobre as perspectivas dos dois lados envolvidos, americanos (A conquista da honra) e japonês (Cartas de Iwo Jima). O diretor soube contornar a questão de sua nacionalidade e evitou o maniqueísmo habitual de filmes do estilo. O resultado é pra lá de satisfatório.

Isolados, A conquista da honra e Cartas de Iwo Jima são grandes filmes, com uma ligeira vantagem para o segundo, mas juntos, ganham ares de tratado anti-belicista. O primeiro fala sobre a história da famosa foto onde soldados americanos içam sua bandeira no alto do monte Iwo Jima, registro que ajudou a mudar o curso da guerra. Naqueles tempos os EUA estavam praticamente sem recursos para manter a gigantesca iniciativa de guerra, e a população do país já estava farta do combate. Graças a essa foto, estampada na capa de todos os jornais americanos, os estadudinenses foram tomados pelo patriotismo, e passaram a enxergar um sentido na batalha.

O governo percebe neste novo sentimento uma oportunidade para conseguir fundos para continuar com força total na investida contra o Japão. Um gigantesco esquema de publicidade é montado em cima do evento, distorcendo fatos em nome de uma versão mais emblemática para o público. Os sobreviventes presentes na foto são convocados de volta aos EUA para servirem de garotos propaganda para venda de títulos para a guerra.

Cartas de Iwo Jima se concentra na preparação das tropas japonesas para se defender do iminente ataque americano. Conscientes da grande desvantagem numérica, a maioria dos soldados vê o combate como uma forma de morrer honrosamente. Não é o caso do general Tadamichi Kuribayashi (Ken Watanabe), comandante das tropas. Ele acredita que suas tropas devem empregar todas as forças para segurar o inimigo pelo maior período possível, possibilitando que o restante do Japão tenha tempo para se reestruturar para as próximas batalhas. O conflito de ideologias dá o tom do filme, auxiliado pela dinâmica do relacionamento dos soldados, e do assombro dos mesmos diante de uma inevitável morte.

Aliás, analisar o comportamento humano sempre foi um dos fortes do diretor. Ambos os filmes contam com diversas cenas de combate impactantes, mas elas são apenas pano de fundo para a preocupação maior de Clint, analisar a mente dos soldados, vítimas de combates irracionais criados por burocratas engravatados, que na grande maioria das vezes, fica muito longe dos campos de batalha. Uma triste realidade que perdura até os dias de hoje. Basta olhar o esforço dos governantes para acobertar as mentiras por trás da histórica foto do primeiro filme. Qualquer semelhança com o governo Bush e sua “Guerra contra o terror” não é mera coincidência.

Vale destacar também a bela fotografia, extremamente dessaturada, deixando ambos os longas próximos do preto e branco, e da direção coesa de Eastwood, que só pecou pela grande quantidade de flashbacks em A conquista da honra (que comprometem o ritmo da produção). Ironicamente, torço para que Clint perca o Oscar nesse domingo. A noite é de Martin Scorsese. Eastwood certamente não se importará, não porque ele já ter duas estatuetas, mas pela certeza de que se continuar mantendo a postura que tanto admiro, ele ainda concorrerá para muitos outros.


... e americanos em "A conquista da honra".

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